domingo, 22 de novembro de 2020

terra

Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra.
Antônio Vieira
 
 
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).
Raduan Nassar - Lavoura Arcaica


Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
Alterto Caeiro
 
 



When I pass through the leg high grass, I shall die
Under the jasmine, I shall die
In the elder tree
I need not try to prepare for a new coming day
Where is it that fills the deepness I feel?
 
...how could I hide from top to food
That I lost something in the hills
I lost something in the hills
Oh, I lost something in the hills

sábado, 31 de outubro de 2020

frio (3)


dai-me flores
quaisquer flores
à solidão de se viver entre obras amenas
por cima das quais o pulso continua,
sobrevive à fraca sutura
de gestos gastos
  
sejam essas as flores que me deis
à altura que me separa 
de desenhos que não desejo mais fazer
 
às bocas preteridas,
em nome de quem me retiro destas cadeiras para sempre
 
mas então,
que hei de viver,
se a terra fresca 
e o corpo vermelho
jazem atrás de dias gastos?
 
dai-me flores,
logo que sejam amplas
com que fazer o tamanho do viver

 


What’s in the brain that ink may character
Which hath not figured to thee my true spirit?
What’s new to speak, what new to register,
That may express my love or thy dear merit?
Nothing, sweet boy; but yet, like prayers divine,
I must each day say o’er the very same,
Counting no old thing old, thou mine, I thine,
Even as when first I hallow’d thy fair name.
[...]
Shakespeare

... le pur bonheur de passer de la nuit de la possibilité au jour de la présence.
Blanchot - La part du feu

Quaisquer flores, logo que sejam muitas... 
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas 
Em me dardes muitas flores, 
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço 
Que me deis flores... 
Sejam essas as flores que me deis... 
F. Pessoa