sábado, 19 de março de 2022

silêncio

 
As sereias têm uma arma ainda mais fatal que o canto: seu silêncio. E ainda que nós não consigamos imaginar bem isto, alguém talvez tenha se libertado do charme de suas vozes, mas nunca de seu silêncio.
Kafka


A hemorragia do discurso nasce da impossível sutura do silêncio.
Le Breton - Du silence
 
 
A poesia reconhece a penúria na raiz das palavras que procuram fechar a brecha entre realidade e significado, das palavras que amordaçam o silêncio da significação excedida.
Kovadloff, Santiago - A palavra no abismo: poesia e silêncio
 
 
(...) quanto mais o mundo se afirma como futuro e dia pleno da verdade onde tudo terá valor, onde tudo conterá sentido, onde o todo se realizará sob o domínio do homem e para seu uso, mais parece que a arte deve descer para esse ponto onde nada ainda tem sentido, mais importa que ela mantenha o movimento, a insegurança e o infortúnio do que escapa a toda a apreensão e a todo fim. O artista e o poeta como que receberam a missão de nos recordar obstinadamente o erro, de nos voltarmos para esse espaço em que tudo o que nos propomos, tudo o que adquirimos, tudo o que somos, tudo o que se abre na terra e no céu, retorna ao insignificante, onde aquilo que se aborda é o não-sério e o não-verdadeiro, como se talvez brotasse aí a fonte de toda a autenticidade.
Blanchot
 
 

quarta-feira, 16 de março de 2022

perguntar

La [...] pura sensación en el niño se transforma en problema y pregunta, en conciencia interrogante: ¿qué  somos y cómo realizaremos eso que somos?
Octavio Paz


Perguntar é carecer cabalmente.
Kovadloff - O silêncio primordial


Para que o ser humano possa questionar, é preciso que [...] seu ser seja transitado pelo nada.
Sartre - O ser e o nada


Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

murmúrio, exterior (2)

Para ver as coisas, devemos, primeiramente, olhá-las como se não tivessem nenhum sentido: como se fossem uma advinha.
Ginzburg - Olhos de madeira


Ser prisioneira de um dia de extrema claridade.
Llansol


   

secrets and lies
I’m nearsighted
been fading too long
 
there’s spots in my eyes 
it's taken my sight away
I squint thru a fuzzy day
descriptions are loose since I've been staring at the sun
things ain't what they seem
I'm rampant with pareidolia
 
doctor my eyes 
they keep telling lies 


domingo, 22 de novembro de 2020

terra

Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra.
Antônio Vieira
 
 
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).
Raduan Nassar - Lavoura Arcaica


Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
Alterto Caeiro
 
 



When I pass through the leg high grass, I shall die
Under the jasmine, I shall die
In the elder tree
I need not try to prepare for a new coming day
Where is it that fills the deepness I feel?
 
...how could I hide from top to food
That I lost something in the hills
I lost something in the hills
Oh, I lost something in the hills

sábado, 31 de outubro de 2020

frio (3)


dai-me flores
quaisquer flores
à solidão de se viver entre obras amenas
por cima das quais o pulso continua,
sobrevive à fraca sutura
de gestos gastos
  
sejam essas as flores que me deis
à altura que me separa 
de desenhos que não desejo mais fazer
 
às bocas preteridas,
em nome de quem me retiro destas cadeiras para sempre
 
mas então,
que hei de viver,
se a terra fresca 
e o corpo vermelho
jazem atrás de dias gastos?
 
dai-me flores,
logo que sejam amplas
com que fazer o tamanho do viver

 


What’s in the brain that ink may character
Which hath not figured to thee my true spirit?
What’s new to speak, what new to register,
That may express my love or thy dear merit?
Nothing, sweet boy; but yet, like prayers divine,
I must each day say o’er the very same,
Counting no old thing old, thou mine, I thine,
Even as when first I hallow’d thy fair name.
[...]
Shakespeare

... le pur bonheur de passer de la nuit de la possibilité au jour de la présence.
Blanchot - La part du feu

Quaisquer flores, logo que sejam muitas... 
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas 
Em me dardes muitas flores, 
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço 
Que me deis flores... 
Sejam essas as flores que me deis... 
F. Pessoa


domingo, 17 de março de 2019

murmúrio, exterior

Não se foge do mundo, mas justamente para ele,  a fim de se deter na familiaridade tranquila. A fuga de-cadente para o sentir-se em casa da public-idade foge de não sentir-se em casa.
Heidegger - A disposição fundamental da angústia/ansiedade como abertura privilegiada do Dasein. In: Ser e Tempo I

 

... a recusa da morte, a tentação do eterno, tudo aquilo que conduz os homens a preparar um espaço de permanência. Incansavelmente, nós edificamos o mundo, a fim de que a dissolução secreta seja esquecida em favor dessa coerência de noções e objetos, de relações e de formas, onde o nada não saberia se infiltrar e onde belos nomes - todos os nomes são belos - bastam para nos fazer felizes.
Blanchot - A conversa infinita (adaptado)


Vós sois o sal da terra; mas, se o sal perder o seu sabor, com que se há de salgar?
Mateus 5:13





How do you hide from something you have found?

Do you hear that sound?
That scratching sound?
Is it better to be lost or found?
You can't ignore it
You can't talk it away
You can't drink it away
You can't fuck it away

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

somenos (2)

os doentes não como banidos de um sistema benéfico, mas como fugitivos de um fracasso colossal
Beckett - Murphy


Que contestação produz essa região excluída e abjetada para a hegemonia simbólica, que contestação pode forçar uma rearticulação radical do que qualifica o corpo como corpo que importa, maneiras de viver que contam como “vida”, vidas que vale a pena proteger, vidas pelas quais vale a pena sofrer?
Judith Butler - Bodies that matter


a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém.
Clarice Lispector - A hora da estrela


Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Excepto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Fernando Pessoa - Poesias de Álvaro de Campos