segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

somenos (2)

os doentes não como banidos de um sistema benéfico, mas como fugitivos de um fracasso colossal
Beckett - Murphy


Que contestação produz essa região excluída e abjetada para a hegemonia simbólica, que contestação pode forçar uma rearticulação radical do que qualifica o corpo como corpo que importa, maneiras de viver que contam como “vida”, vidas que vale a pena proteger, vidas pelas quais vale a pena sofrer?
Judith Butler - Bodies that matter


a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém.
Clarice Lispector - A hora da estrela


Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Excepto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Fernando Pessoa - Poesias de Álvaro de Campos



quinta-feira, 1 de setembro de 2016

fome

Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar.
Fernando Pessoa


Ser ainda onde não se é mais
que este "ainda" a viver.
Edmond Jabès - Angoisse d'une seule fin


O despojamento mal justificado que se ligara àquela vida perdida das Sirtes, o sacrifício consentido em pura perda que ela implicava traziam para mim a garantia de uma obscura compensação. Na sua própria vacuidade, no seu despojamento e na sua regra severa, ela parecia medir e merecer a recompensa de uma emoção mais importante do que tudo o que a vida de festas de Orsenna me oferecera de medíocre e refinado. Aquela vida despojada oferecia-se claramente, na evidência de sua própria inutilidade, a algo que fosse enfim digno de aceitá-la; desdenhosa dos apoios vulgares e como que aventurando-se em falso sobre a boca de um abismo, ela exigia uma escora proporcional ao seu impulso para o vazio. Seu encanto desolado era o mesmo que frustra a expectativa de uma sentinela; suas antenas levantadas, insensíveis aos eflúvios repousantes da terra, eram como que a súplica de um sopro do alto mar; seu grito de vigia, apelo de um eco já em potencial na suspensão extrema do ouvido que ele provocava.
Julien Gracq - O litoral das Sirtes



[...] como se a totalidade objetiva não preenchesse a verdadeira medida do ser [...]. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de decoração saberiam satisfazer o Desejo que tende [a alhures e ao outro]. O Outro desejado não é como o pão que como, como o país que habito, como a paisagem que contemplo [...]. [...] Desejo de um país onde nós não nascemos. De um país estrangeiro a toda natureza [...] e para onde nós não nos transportaríamos jamais. [...] Ao Desejo, o Desejado não o completa, mas o escava. [...] O Desejo é desejo do absolutamente Outro. Fora da fome que se satisfaz, da sede que se sacia e do sentido que se apazigua, deseja o Outro para além das satisfações, sem que ao corpo seja possível um gesto que diminua o anseio, sem que seja possível ao corpo esboçar uma carícia, nem inventar carícia nova. Desejo sem satisfação que, precisamente, ouve o distanciamento, a outridade e a exterioridade do Outro. (tradução e grifo meus)
Lévinas - Totalité et Infini


quarta-feira, 31 de agosto de 2016

somenos




Não há um desejo de se lamentar por aqueles a quem fomos incapazes de amar, um amor que não alcança as "condições de existência"?
Judith Butler - The Psychic Life of Power

Abre [a porta] a quem não bater em tua porta.
Fernando Pessoa - Poesias Coligidas

Ser insignificante e continuar sendo. E, se uma mão, uma circunstância, uma onda me erguesse e me levasse até o alto, onde reinam o poder e o crédito, eu destruiria o estado de coisas que me fosse favorável e me lançaria no fundo da escuridão baixa e fútil. Só consigo respirar nas regiões inferiores.
Walser - O Instituto Benjamenta

eu sou aquele que qualquer um pode substituir, o não-indispensável por definição e aquele que, no entanto, não pode se dispensar de responder por e para o que não é: uma singularidade de empréstimo e de acaso - aquela do refém, que é, sem consentir, a garantia, não escolhida, de uma promessa que ele não fez, o insubstituível que não detém seu lugar.
[...]
Que outrem não tenha outro sentido senão o recurso infinito que eu lhe devo, que ele seja o chamado ao socorro sem termo [...], me faz desaparecer no movimento infinito do serviço onde eu não sou senão um singular temporário, um simulacro de unidade [...] uma exigência [...] que me excede de todas as maneiras, até me desindividualizar.
[...]
Minha responsabilidade por Outrem supõe uma ruptura tal, que não se distingue senão por uma mudança de estatuto de "eu", uma mudança de tempo e talvez uma mudança de linguagem. Responsabilidade que me retira de minha ordem - talvez de toda ordem - e me descarta do eu (na medida em que eu é o mestre, o poder, o sujeito livre e falante), descobrindo o outro em vez de mim, me permite responder pela ausência, quer dizer, pela impossibilidade de ser responsável, à qual essa responsabilidade sem medida já sempre me jurou, me devotando e me desorientando. (grifos e tradução meus)
Maurice Blanchot - L'Écriture du Désastre