sábado, 31 de outubro de 2020

frio (3)


dai-me flores
quaisquer flores
à solidão de se viver entre obras amenas
por cima das quais o pulso continua,
sobrevive à fraca sutura
de gestos gastos
  
sejam essas as flores que me deis
à altura que me separa 
de desenhos que não desejo mais fazer
 
às bocas preteridas,
em nome de quem me retiro destas cadeiras para sempre
 
mas então,
que hei de viver,
se a terra fresca 
e o corpo vermelho
jazem atrás de dias gastos?
 
dai-me flores,
logo que sejam amplas
com que fazer o tamanho do viver

 


What’s in the brain that ink may character
Which hath not figured to thee my true spirit?
What’s new to speak, what new to register,
That may express my love or thy dear merit?
Nothing, sweet boy; but yet, like prayers divine,
I must each day say o’er the very same,
Counting no old thing old, thou mine, I thine,
Even as when first I hallow’d thy fair name.
[...]
Shakespeare

... le pur bonheur de passer de la nuit de la possibilité au jour de la présence.
Blanchot - La part du feu

Quaisquer flores, logo que sejam muitas... 
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas 
Em me dardes muitas flores, 
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço 
Que me deis flores... 
Sejam essas as flores que me deis... 
F. Pessoa