terça-feira, 15 de dezembro de 2009

a cidade e eu

Quando entro numa via pública, abro a boca, deixo bolhas de sabão saindo dela e não a fecho mais. Acompanho essa língua, passo diário. Zzz. Ponho-me no automático, até curvas faço sem as mãos. Às vezes piso demais e acerto alguma placa, destruo muros. Quando, sem querer, escapo do chão e levanto voo, agarro num poste. Meu médico, um pessimista, não concorda, mas creio que melhoro aos poucos. Zzz. Comendo romanos como um romano. A verdade é que emagreço: sem culpa alguma, o apetite raramente não acaba no cardápio. Ao menos ainda conservo essa deselegância. Venho aprendendo, desde a infância, que certas roupas e silêncios certos fazem bem à saúde tanto quanto esquecer de sorrir pode ser humilhante, por isso a terapia que me receitaram perverti num hábito noturno de crocitar baixo.
Mais uns anos grasnando e emagrecendo, podem me trocar por uma escultura contemporânea sem que eu mesmo perceba diferença. É mais provável que antes canse de mim mesmo. Daí me demito novamente, porque não permito piedades, a não ser as da ironia. Como da vida não tiro mais que ásperas miragens, serve de consolo deixar os investimentos pra trás e sair ambíguo. Muito tempo pra nada, pouco tempo pra tudo. Quando quiser me aposentar, escondo minha cabeça num buraco – quem sabe não ajude a acabar com as rugas...

Perguntei ridículo
Com o pé no estribo:
Servirá o remendo
Do vermelho gemido?
Chegará o tempo
Do dourado trigo?
Perguntei ridículo
Com o pé no estribo



A única coisa que se deveria fazer era acomodar-se à situação tal como se apresentava. Mesmo quando fosse possível melhorar alguns pormenores – o que, porém, era uma louca ilusão – no melhor dos casos apenas se teria obtido algo que poderia valer para os futuros processos, enquanto o sujeito se teria prejudicado incalculavelmente ao chamar sobre si a especial atenção dos funcionários e despertar neles um rancoroso desejo de vingança. Não! Era preciso não chamar a atenção! Era preciso comportar-se com serenidade mesmo quando se estivesse a ponto de ficar louco. Era necessário procurar compreender que esse grande organismo de justiça era de certo modo eterno em suas flutuações, que se alguém pretendia mudar nele alguma coisa era como tirar-se ele próprio o solo de sob os seus pés e que ele mesmo é que se precipitava na queda enquanto o grande organismo, vendo-se apenas muito ligeiramente afetado por isso, conseguiria facilmente uma peça de reposição (sempre dentro de seu mesmo sistema) e permaneceria imutável, se não acontecia que – e isto era até o mais verossímil – se tornava ainda mais fechado, ainda mais atento a tudo o que acontecia, ainda mais severo, ainda pior.
Kafka - o processo

em baixo do tapete

Afinal, isto bem me contentaria, se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha tristeza, a minha incompetência para a vida.
Pessoa


Esta vida parece insuportável; uma outra, inalcançável. Não há mais vergonha em se desejar morrer; pede-se apenas o deslocamento da velha cela, que se odeia, para uma nova, a qual no devido tempo se aprenderá a odiar.
Kafka


Nature's first green is gold
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.
Robert Frost